O Céu e o Inferno
ou
A Justiça Divina Segundo o
Espiritismo
Autor: Allan Kardec.
Lançado em 1865.
Breve relato da obra:
Trata-se, como o próprio título diz, da visão espírita das recompensas e penas
futuras, comumente conhecidas como céu e inferno na tradição católica. Contém
impressionantes relatos de espíritos das mais diversas categorias.
Segunda Parte – cap. V
SUICIDAS
LUÍS
E A PESPONTADEIRA DE BOTINAS
Havia sete para oito meses que Luís G.,
oficial-sapateiro, namorava uma jovem, Vitoria R., pespontadeira de botinas, com
a qual em breve deveria casar-se, já tendo mesmo corrido os proclamas do
casamento.
Estando neste pé as coisas, consideravam-se
quase definitivamente ligados e, como medida econômica, diariamente vinha o
sapateiro almoçar e jantar na casa da noiva.
Um dia, ao jantar, sobreveio uma
controvérsia a propósito de qualquer futilidade, e, obstinando-se os dois nas
opiniões, foram as coisas ao ponto de Luís abandonar a mesa, protestando não
mais voltar.
Apesar disso, no dia seguinte veio pedir
perdão. A noite é boa conselheira, como se sabe, mas a moça, prejulgando talvez
pela cena da véspera o que poderia acontecer quando não há mais tempo de
remediar o mal, recusou-se à reconciliação. Nem protestos, nem lágrimas, nem
desesperos puderam demovê-la. Muitos dias ainda se passaram, esperando Luís que
sua amada fosse mais razoável, até que resolveu fazer uma última tentativa.
Chegando à casa da moça, bateu de modo que
fosse reconhecido, mas a porta permaneceu fechada, recusaram abrir-lhe.
Novas súplicas do repelido, novos protestos
não ecoaram no coração da sua pretendida. “Adeus, pois, cruel! – exclamou o
pobre moço – adeus para sempre. Trata de procurar um marido que te estime tanto
como eu”. Ao mesmo tempo a moça ouvia um gemido abafado e logo após o baque
como que de um corpo escorregando pela porta. Pelo silêncio que se seguiu, a
moça julgou que Luís se assentara à soleira da porta e protestou a si mesma não
sair enquanto ele ali se conservasse.
Decorrido um quarto de hora é que um
locatário, passando pela calçada e levando luz, soltou um grito de espanto e
pediu socorro.
Depressa acorre a vizinhança, e Vitorina,
abrindo então a porta, deu um grito de horror, reconhecendo estendido sobre o
lajedo, pálido, inanimado, o seu noivo. Cada qual se apressou em socorrê-lo,
mas para logo se percebeu que tudo seria inútil, visto como ele deixara de
existir. O desgraçado moço enterrara uma faca na região do coração e o ferro
ficara-lhe cravado na ferida.
(Sociedade Espírita de Paris, agosto
de 1858)
1.
Ao Espírito de S. Luís – A moça, causadora involuntária do
suicídio, tem responsabilidade?
R. Sim, porque o não amava.
2. Então
para prevenir a desgraça deveria desposá-lo a despeito da repugnância que lhe
causava?
R. Ela procurava uma ocasião de descartar-se e assim fez no começo da
ligação o que viria a fazer mais tarde.
3. Neste
caso, a sua responsabilidade decorre de haver alimentado sentimentos dos quais
não participava e que deram resultado ao suicídio do moço?
R. Sim, exatamente.
4. Mas
então essa responsabilidade deve ser proporcional à falta e não tão grande como
se consciente e voluntariamente houvesse provocado o suicídio.
R. É evidente.
5. E
o suicídio de Luís tem desculpa pelo desvario que lhe acarretou a obstinação de
Vitorina?
R. Sim, pois o suicídio oriundo do amor é menos criminoso aos olhos de
Deus, de que o suicídio de quem procura libertar-se da vida por motivos de
covardia.
(Ao Espírito de Luís G., evocado mais
tarde, foram feitas as seguintes perguntas):
1.
Que julgais da ação que praticastes?
R. Vitorina era uma ingrata e eu fiz mal em suicidar-me por sua causa,
pois ela não o merecia.
2. Então
não vos amara?
R. Não. A princípio iludia-se, mas a desavença que tivemos abriu-lhe os
olhos e ela até se deu por feliz achando um pretexto para se livrar de mim.
3. E
o vosso amor por ela era sincero?
R. Paixão somente, creia; pois se o amor fosse puro eu me teria poupado de
lhe causar um desgosto.
4. E
se acaso ela adivinhasse a vossa intenção, persistiria na sua recusa?
R. Não sei, penso mesmo que não, porque ela não é má. Mas, ainda assim,
não seria feliz, e melhor foi para ela que as coisas se passassem dessa forma.
5.
Batendo-lhe à porta, tínheis já a ideia de vos matar, caso se desse a recusa?
R. Não pensava naquilo ainda, porque também não contava com a sua obstinação.
Foi somente à vista desta que perdi a razão.
6. Parece
que não lamentais o suicídio senão pelo fato de Vitorina o não merecer... É
realmente o vosso único pesar?
R. Neste momento, sim; estou ainda perturbado, afigura-se-me estar ainda à
porta, conquanto também experimente outra sensação que não posso definir.
7. Chegareis
a compreendê-la mais tarde?
R. Sim, quando estiver livre desta perturbação. Fiz mal, deveria
resignar-me... Fui fraco e sofro as consequências da minha fraqueza. A paixão
cega o homem a ponto de obrigá-lo a praticar loucuras e infelizmente ele só o
compreende muito tarde.
8. Dizeis
que tendes um desgosto... qual é?
R. Fiz mal em abreviar a vida. Não deveria fazê-lo. Era preferível tudo
suportar a morrer antes do tempo. Sou portanto infeliz; sofro e é sempre ela
que me faz sofrer, a ingrata. Parece-me estar sempre à sua porta, mas... não
falemos nem pensemos mais nisso, que me incomoda muito. Adeus.
Observações
de A. Kardec: Por isto se vê uma nova confirmação da
justiça que preside à distribuição das penas, conforme o grau de
responsabilidade dos culpados. Neste caso, é à moça que cabe a maior
responsabilidade, por haver entretido em Luís um amor que não sentia, por
brincadeira. Quanto ao moço, este já é de sobejo punido pelo sofrimento por que
passa, mas a sua pena é leve, porquanto apenas cedeu a um movimento
irrefletido, em momento de exaltação e não à fria premeditação dos suicidas que
ousam subtrair-se às provações da vida.
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