Getsêmane
No cenáculo de Jerusalém ardiam
ainda as lâmpadas da ceia pascal, consumindo lentamente as últimas gotas de
óleo. A sala, porém, estava deserta.
Retira-se Jesus com os seus
discípulos em demanda do Monte das Oliveiras, onde, tencionava passar a última
noite da sua vida mortal. Não permitia a lei que o israelita ultrapassasse o
perímetro urbano, nessa noite sagrada; por isso não pernoitou Jesus com os seus
devotados amigos de Betânia.
Iscariotes não ignorava esse
dispositivo legal, e sobre ele baseara o seu plano sinistro.
Desceu, pois, o pequeno grupo de
notívagos a ladeira oriental do Monte Moriá, em cujo cimo se erguia o templo;
cruzaram o vale Cedrom e o arroio e encaminharam-se para a rampa oposta
ensombrada de numerosas oliveiras...
Iam quase em completo silêncio.
Passaram ao pé dos mausoléus de
Absalão e de Zacarias, que almejavam ao clarão da lua cheia, que acabava de
emergir das brumas do horizonte.
Era primavera, princípios de
abril. As noites eram ainda bastante frias.
Havia naquela rampa uma granja,
por nome Getsêmane, que quer dizer “horto da prensa de olivas”.
A entrada desse bosque, disse
Jesus aos seus discípulos:
- Sentai-vos aqui, enquanto eu
vou orar.
Levou consigo para o interior
apenas a Pedro, Tiago e João, os três confidentes íntimos que lhe tinham
presenciado a glória do Tabor e iam nesta noite assistir à sua profunda
humilhação.
Entraram.
Chegados ao meio do horto,
sentaram-se os três sobre os blocos de pedras calcárias esparsas à sombra das
oliveiras seculares. Parecia um pugilo de sonâmbulos... Os três não sabiam bem
o que pensar daquela noite singular e daqueles ares de mistério do Mestre...
Reinava grande silêncio.
Ergueu Jesus as mãos ao céu,
enquanto os seus lábios tremiam e os olhos se arregalavam, numa expressão de
terror. A sua face lívida parecia a de um defunto. Os três discípulos
contemplavam, estupefatos, essa mudança do Mestre.
Disse-lhes então Jesus num tom
dolente e suave:
- Minha alma está numa tristeza
mortal. Ficai aqui e vigiai comigo.
Distanciou-se deles uns cem
passos, prostrou-se de face por terra, e, tremendo em todo o corpo, soltava
gemidos de angústia.
Não se conhecia mais aquele
homem intrépido e corajoso de outros dias. O impávido herói, que marchava ao
encontro da morte com passo firme e resoluto, jaz agora por terra como que
aniquilado em face dos horrores de que, como sabia, estavam cheios aquela noite
e o dia imediato. Era verdadeiro homem e não podia deixar de horrorizar-se ante
o aspecto sinistro da morte – e morte crudelíssima em pleno vigor de seus 33
anos...
Tão imensa era a angústia do seu
coração, que dos lábios lhe rompeu este brado de socorro:
- Meu Pai! Se é possível, passa
de mim este cálice sem que eu o beba!...
Perdem-se no vácuo os clamores
do padecente. Nenhum coração lhe acolhe o grito de agonia... Branquejam ao luar
as pedras de Getsêmane... Ciciam, ao perpassar das brisas noturnas, as folhas
cinzentas das oliveiras... Chiam à surdina, pela grama do solo, as cigarras
monótonas... Dormem ao pé das árvores os três discípulos que tinham sido
convidados para passarem com o homem das dores...
O próprio Pai celeste parece ter
abandonado o seu Filho Unigênito; não lhe responde aos brados de angústia...
E Jesus, depois de esperar
inutilmente um eco à sua voz, acrescenta resignado:
- Não se faça a minha vontade,
mas, sim, a tua.
Depois deste primeiro ato do
horroroso drama noturno, ergue-se e, como se tivesse medo de ficar sozinho
naquela escuridão pressaga, foi ter com os seus discípulos, em busca de
companhia e de lenitivo.
Mas encontrou-os adormecidos.
Era a reação natural do organismo; após umas horas de intensa emoção a natureza
reclamava os seus direitos, os nervos exigiam repouso. Adormeceram.
Disse Jesus a Pedro e seus
companheiros:
- Como?... Estais a dormir? Não poderdes
então vigiar comigo uma hora?... Vigiai e orai para não cairdes em tentação!...
É tão doloroso sermos
abandonados dos nossos amigos na hora em que mais precisamos deles! Jesus
sentiu o amargo dessa apatia e dessa incompreensão; mas, ainda assim, desculpou
os discípulos, dizendo:
- O espírito, sim, está pronto,
mas a carne é fraca. Retirou-se pela segunda vez e tornou a prostrar-se de
bruços, repetindo com maior insistência a mesma súplica.
E o mesmo silêncio acolheu os
brados de sua angústia. Não era possível que passasse dele o cálice do
sofrimento e da morte. Era esta a vontade firme da natureza divina do Cristo,
nem jamais vacilou neste propósito; o que relutava era tão-somente a sua
natureza humana, o sentimento natural de horror e aversão que todo homem normal
experimenta em face de tão pavorosa perspectiva. Jesus era homem – homem humano
e genuíno.
Pela segunda vez foi procurar
companhia e consolação com os seus amigos, e pela segunda vez voltou
decepcionado: encontrou-os novamente submersos no sono.
Então, desceu ao tenebroso
abismo da agonia interior. Tamanha foi a angústia de sua alma, que o sangue
confluiu para o interior do organismo, como que receoso de ser derramado
naquela noite; o coração, num impulso veemente, repeliu a onda rubra para a
periferia do corpo com tanta violência,
que o sangue rebentou por todos os poros da epiderme, e começou a tingir as
vestes do Nazareno e a correr sobre as folhas secas das oliveiras.
Parecia chegada a última hora do
solitário padecente de Getsêmane.
Ecoou pelo silêncio do espaço
noturno um grito doloroso:
- Meu Pai!... Não é possível que
passe de mim este cálice sem que o beba?
E, enquanto os seus olhos
arregalados interrogam a escuridão da noite, e o seu peito arfa, prestes a
estalar sob a veemência da agonia – eis que aparece por entre as sombras das oliveiras
um mensageiro celeste, um anjo que conforta o divino mártir da solidão. Não lhe
tira o cálice do sofrimento, mas dá-lhe de beber outro cálice, um misterioso
antídoto da agonia. E Jesus bebe o cálice da fortaleza e da esperança: queria
realizar plenamente a sua natureza humana, sofrendo voluntariamente sob os
auspícios do seu Cristo divino.
E o coração de Jesus se acalma,
e seus lábios sangrentos murmuram;
- Faça-se a tua vontade, meu
Pai...
Passou a crise. Desde esse
momento, o Nazareno não mais vacila, não mais se queixa, não mais recua diante
de sofrimento algum; aceita tudo, como se nada mais sentisse.
Levantou-se da terra, foi ter
com os seus discípulos e lhes disse em tom resoluto e enérgico:
- Levantai-vos! Vamos! Eis que
aí vem o meu traidor!
Texto extraído do livro Jesus Nazareno, Huberto Rohden (autor não espírita)
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