- Além de me
reconhecer em personagens suicidas, nas histórias que me foram mostradas em
desdobramento – e posteriormente transpostas em livros –, pude reencontrar
outros personagens em nova vestimenta carnal, como consta em Memórias de um Suicida, dizia-me Yvonne,
estando a sós conosco na varanda onde recebia as visitas.
- Como no
momento estamos sem testemunhas, continuou ela, vou lhe contar um caso
relacionado com um personagem, um figurante, melhor dizendo, da citada obra. A
propósito, este livro, desde que foi publicado, tem suscitado tantas discussões
e opiniões dos leitores, que até nos dias atuais tenho sido solicitada a dar
explicações, quer verbais, quer por cartas, pelo fato de tê-lo recebido. Eu
penso que outros estudiosos estarão mais bem preparados para fazê-lo. Contudo,
o que vou lhe narrar está confiado a um número restrito de pessoas: diz
respeito a mim e a uma pessoa por quem tenho muita estima.
Yvonne,
então, falou:
- Na colônia
espiritual onde se situa o Hospital Maria de Nazaré, trabalhava, em um de seus
departamentos, um simpático rapaz chamado Otávio, inicialmente apenas observado
por mim nas incursões que fazia àquele local em desdobramento, até que fomos
apresentados pelo mentor que me conduzia naquelas atividades. As afinidades
detectadas por nós propiciaram uma maior aproximação, iniciando-se, assim,
nossa amizade. E a médium continuou:
- Certo dia,
conversando sobre as próximas reencarnações de elementos da colônia, ele
assegurou-me que estava se preparando para voltar. Indaguei dele sobre as
condições impostas para a futura reencarnação, uma vez que era suicida.
Disse-me ele que seria em organismo normal, sem o estigma de mutilação ou outro
tipo de deficiência física. Contudo, levaria, no seu quadro expiatório, a perda
da criatura amada na fase da vida em que os sonhos da juventude começam a se concretizar,
projetando a consolidação de um casamento feliz. Então, lhe perguntei:
- Por que
terás de enfrentar este tipo de prova, sabidamente tão frustrante e dolorosa na
mocidade?
- As causas
que me levarão a este sofrimento remontam a algumas existências que tivemos
juntos, em que eu e a criatura amada transformamos nosso amor, iniciado com a
pureza e a simplicidade de almas afins, num vórtice, onde as ilusões,
alimentadas pelo orgulho e a vaidade, levaram-nos a profundo abismo, tisnando
nossos organismos psíquicos com as sombras de pesados remorsos, a reclamar
reparação.
- Poderias
contar tua história a mim, caro Otávio? Talvez pudesse trazer-lhe algum alívio
ao confiá-la a esta amiga que passa por duras provas na carne.
Ele inclinou
a cabeça num gesto afirmativo e iniciou sua história.
- No século passado¹, nascera eu em Portugal, em família letrada, mas de poucos recursos
materiais. Muito cedo demonstrava vocação e competência nos estudos, motivo
pelo qual fora mandado pelos meus pais à Inglaterra, para completá-los e, a
duras penas, mantido naquele reino. Nos anos em que lá vivi, fui levado a
frequentar a sociedade pelos meus colegas, sempre procurando ocultar minha
origem plebeia entre burgueses bem aquinhoados e membros da nobreza que se
misturavam com os estudantes. Minha amada era um destes últimos. Nascera em
família de nobre estirpe, herdeira de títulos e fortuna.
Observando
meu interesse pela história, continuou:
- Uma vez
apresentados, manifestou-se, como era de se esperar, o chamado “amor à primeira
vista”. Ele cresceu com tal intensidade, que logo nos apaixonamos. Embora
gozasse eu de um belo físico, projetava minha capacidade na profissão que iria
exercer como o principal dote a lhe oferecer, aguardando promissor futuro. No
entanto, o orgulho que um dia me afastara dela, voltava-se, agora, contra mim.
A sua família que inicialmente me aceitara, por admirar-me o porte de
gentil-homem, centrado em cativante personalidade – agora, sabedora de nosso
namoro – deixou, repentinamente, de receber-me, apartando-me de meus colegas,
pondo-se em busca de informações sobre minhas origens. Resultado: fui vítima do
julgamento preconceituoso de seus membros que me estigmatizaram como “jovem
estrangeiro, emergido da plebe que – atrevidamente – se esforça para subir à
burguesia”. Uma de suas tias dissera em público que “o pretensioso candidato no
seio de sua família”. De imediato, nossos encontros foram terminantemente proibidos
e a jovem afastada do ambiente que eu frequentava. Fiquei profundamente
abalado, porque, no íntimo, eu me sentia como um deles.
Fez uma
significativa pausa, pois a rememoração de sua infelicidade parecia voltar a
castigar-lhe o espírito, mas continuou:
- O
rompimento dos laços que me ligavam a ela levou-me ao desespero. Procurei-a,
vencendo obstáculos quase irremovíveis.
Fez outra
pausa e continuou, enfatizando o que viria a dizer:
- Como é
poderosa a paixão quando posta em ação! Consegui, enfim, uma entrevista com
aquela criatura que eu havia elegido para vivermos juntos para sempre.
- Qual foi o
resultado desse encontro? Perguntei-lhe, ansiosa.
- O mais
frustrante e infeliz que eu pudera imaginar, minha amiga. Depois de confirmar
seu amor por mim, argumentou que não poderia contrariar sua família, sendo
inconcebível tal atitude. Qualquer plano que eu arquitetasse para nos mantermos
unidos seria descartado porque, segundo afirmou ao esquivar-se do compromisso
inicial, “se sentia na obrigação de obedecer aos familiares; teríamos que nos
conformar”. Tomei suas gélidas mãos entre as minhas, cálidas pela paixão que me
dominava; insisti, argumentei, mas foi em vão. A frieza de sua alma, naquele
instante, igualava-se com as das suas mãos, condenando-me ao abismo da separação definitiva
naquela existência.
Com voz
embargada, ele concluiu:
- Tudo que
falei, naquele derradeiro encontro, ficou martelando em meu pensamento, anos a
fio, sem o corpo carnal que eu destruíra em momento de profunda depressão. Os
tormentos do suicídio acabaram trazendo-me para este hospital, socorrido pela
L.S.M., a sigla da Legião dos Servos de Maria, impressa em nossos trajes de
trabalho.
Contristada
com seu drama, consolei-o dizendo-lhe que não estava a sós, eu também vivera
terríveis situações em vidas pretéritas. Depois de uma pausa, ele se animou e
terminou:
- Em breve,
no entanto, entregarei o meu posto de serviço, para concluir os últimos
preparativos de meu retorno à carne e seguir rumo à crosta, onde mais tarde
reencontrarei aquela que foi a principal causa de minha perdição; e ela estará
em plena mocidade, conforme o planejado.
Yvonne
prosseguiu a narrativa:
- Passaram-se
alguns anos e obtive a confirmação por outro espírito que conhecera no
Instituto Maria de Nazaré que vive agora no seio de nossa família: Otávio
reencarnara em segmento familiar ligado a meu pai, revelando-me, também, que
nosso conhecimento do mundo espiritual não fora casual. Nossa aproximação e
nossas afinidades tinham, pois, um motivo.
Notando que
estávamos como que bebendo suas palavras, ela continuou:
- Vim
conhecer Otávio com nome diverso, na nova vestimenta física, quando já era um
menino crescido, pois seus pais, vivendo em estado limítrofe ao nosso, visitam-nos
raras vezes. Chegando à mocidade, soube que se tornara um garboso rapaz e, por
notícias mais recentes, que se formaria brevemente em Direito. Fora estudar na
capital de seu estado e acabara ficando por lá. Depois de receber o diploma,
esteve conosco para passar uns dias, no intuito de descansar dos exaustivos estudos
e preparativos para o início da carreira. Aproveitei as ensanchas, em momento
em que nos vimos a sós, para perguntar-lhe se tinha namorada. Ele ficou um
tanto surpreso, imaginando, talvez, que eu estivesse lendo seus pensamentos.
Olhando-me sorrindo, confidenciou-me:
- Conheci
recentemente uma linda moça e estou muito inclinado a pedi-la em namoro. Por
ora, ninguém em casa está sabendo; Yvonne, ela lembra uma “lady”! Digo-lhe que,
entre os flertes com as moças de minha idade, nunca havia sentido tão forte
atração, como tenho por esta.
- E ela
conhece suas intenções? Perguntei.
- Seus
olhares são inequívocos. Parece apaixonada por mim, embora procure dissimular
seus sentimentos. Já tivemos alguns encontros em nosso grupo de amigos. Alguns
deles já vieram com pilhérias dirigidas a nós. Estou decidido a procurá-la
quando voltar.
Yvonne
continuou:
- Por essa
confissão aquilatei os fatos. Eles já se haviam encontrado e, de acordo com o
plano que me dera a conhecer, antes de reencarnar-se, acabariam por se casar.
Confesso que senti meu peito opresso ao vê-lo tão feliz. No entanto, os
desígnios que vêm do Alto estavam se cumprindo pelos compromissos assumidos.
A médium fez
uma pausa intencional.
- Afinal,
eles se casaram, conforme eu esperava e foram felizes até próximo à data do
primeiro aniversário de suas bodas, quando se preparavam para comemorá-la.
Algumas noites antes, no entanto, voltando no automóvel de um de seus colegas
de trabalho, um deles inquiriu-o sobre a nova vida: “estava tudo bem entre eles?”
A resposta demorou um pouco, mas veio, cheia de ternura e emoção.
- Continuamos
tão enamorados como no dia em que nos encontramos. A felicidade que sinto é tão
grande, que estou temeroso de perdê-la. Curiosamente, vejo-me, algumas vezes,
como se – de repente – tudo acabasse e eu fosse lançado num completo vazio.
Creio, entretanto, que essas sensações sejam passageiras, naturais para alguém,
como eu, que não conhecia ainda tão prazeroso estado de espírito.
Nossa amiga
assumiu um ar triste ao contar os fatos que se seguiram:
- No
porta-malas do carro havia uma braçada de rosas que encomendara para sua
esposa, junto de várias mudas delas. Eram da tonalidade que ela havia escolhido
ao visitarem um horto, dias antes. Chegando a casa, presenteou-a com as rosas e
muito felizes levaram as mudas junto ao canteiro do jardim para serem plantadas
por ela no dia seguinte. Longe estava de pensar, entretanto, que nos espinhos
daqueles talos pudessem existir raros germes de micróbios letais. Assim, ela
foi vítima de fulminante septicemia ao espetar dois de seus dedos naqueles
acúleos contaminados, levando-a ao desencarne em poucos dias. Todos os recursos
usados pelos médicos foram inúteis para evitar que ela partisse,
concretizando-se aquele vazio pressentido por ele. A ausência da esposa adorada
deixou-o prostrado, dias e dias, e, segundo confidenciou-me, meses atrás,
sentiu-se tão derrotado e sem perspectivas para viver, que a ideia do suicídio
lhe assomou à mente...
À medida que
Yvonne narrava o ocorrido, em nossa cabeça haviam passado várias possibilidades
do desfecho dessa união; no entanto, jamais atinaria com aquele, talvez ligado
à baixa imunidade orgânica da jovem. E ela continuou:
- Veja, meu
caro, como se encaixaram os fatos nesta existência: juntos, novamente, ele não
pôde gozar de sua companhia devido ao suicídio que cometera, perdendo o mérito
da felicidade conjugal; e ela, por não havê-lo apoiado, preferindo atender os
rogos de sua família, que lhe dera, em troca, as facilidades de uma vida
faustosa, perdera-a no auge de seus sonhos. Aquela decisão fora causadora do
suicídio – embora de modo indireto – do estrangeiro que ela amava, podendo ter,
pelo matrimônio proposto naquela encarnação, um vida digna e feliz, mesmo
enfrentando a desaprovação de seus preconceituosos familiares. E foi das mãos
dele, que só agiam no intuito de protegê-la e acariciá-la, que vieram os
espinhos para feri-la mortalmente.
Admirado pelo
desfecho do caso, comentei:
- Até parece
um dos contos narrados por Charles², dona Yvonne. Como as infrações que
cometemos perante as leis divinas se organizam para depois serem ressarcidas em
perfeito encadeamento!
- O que mais
importa, no entanto, meu filho, é que aceitemos os acertos sem revolta e sem
cometer desatinos diante das provações, condições estas que fazem com que me
sinta segura, a partir desta encarnação, para receber o retorno de minhas
desídias às leis divinas, confiante na perfeita justiça de nosso Pai; e posso
afirmar isso a você, porque já dei os testemunhos que me foram pedidos nas duras
provas que tenho enfrentado.
No final de
nosso encontro, perguntei à médium sobre a situação daquele infeliz viúvo; e
ela contou-me que, depois que ele começara a instruir-se na Doutrina Espírita,
a conselho dela, sentira-se mais confortado e disposto a retomar a carreira que
havia abandonado. Felizmente a ideia do suicídio fora dissipada “pela ajuda
espiritual que tem recebido e pelos esclarecimentos precisos que só o
Espiritismo nos dá sobre essa perigosa e obsessiva ideia”. E aduziu:
-
Aconselhei-o a abrir seu jovem coração para uma nova companheira, a fim de
retomar a vida a dois; alguém que gostasse dele e que ele pudesse retribuir
esse amor com afeição e gratidão à mãe dos filhos que, por certo viriam,
conforme fui intuída, para uni-los pelos laços da paternidade, podendo, dessa
forma, no futuro, gozar de relativa felicidade em ambiente de paz e amizade,
que só a família constituída nas bases cristãs pode nos oferecer.
Ela olhou-me
com tristeza e concluiu:
- Um dos meus
testemunhos mais dolorosos, meu amigo, foi o de não poder constituir família.
Desde a adolescência sonhava com essa realização em minha vida, porém, Charles,
sempre que encontrava oportunidade, carinhosamente me dizia: “Não nesta
existência, minha filha”. Eu chorava e ele me consolava, mostrando-me que ao
lado da renúncia imposta, delineava uma missão destinada a mim: “Que eu lesse
muito, que escrevesse, para poder, um dia, contribuir para a divulgação do
Espiritismo”.
Texto extraído do livro Yvonne – A Médium Iluminada, de Gerson Sestini, Edições Léon Denis.
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(1) Século XIX.
(2) Mentor espiritual da médium Yvonne A. Pereira.
Parabéns por ter esse olhar em relação ao pedido de socorro do nossos irmãos suicidas. Que esse trabalho crie força se perpetuando cada vez mais em prol dos que precisam de conhecimento! Célia Lima
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