ou
A Justiça Divina Segundo o
Espiritismo
Autor: Allan Kardec.
Lançado em 1865.
Breve relato da obra:
Trata-se, como o próprio título diz, da visão espírita das recompensas e penas
futuras, comumente conhecidas como céu e inferno na tradição católica. Contém
impressionantes relatos de espíritos das mais diversas categorias.
Segunda Parte – cap. V
SUICIDAS
DUPLO
SUICÍDIO POR AMOR E POR DEVER
É de um jornal de 13 de junho de 1862 a
seguinte narrativa:
“A jovem Palmira, modista que residia com
seus pais, era dotada de aparência encantadora e de caráter afável. Por isso
também muito requestada a sua mão. Entre todos os pretendentes ela escolheu o
Sr. B., que lhe retribuía essa preferência com a mais viva das paixões. Não
obstante essa afeição, por deferência aos pais, Palmira consentiu em desposar o
Sr. D., cuja posição social se afigurava mais vantajosa àqueles do que a do seu
rival.
Os Srs. B. e D. eram amigos íntimos e posto
não houvesse entre eles quaisquer relações de interesse, jamais deixaram de se
avistar. O amor recíproco de B. e Palmira, que passou a ser a Sra. D., de modo
algum se atenuara e como se esforçasse ambos por contê-lo, aumentava-se ele de
intensidade na razão direta daquele esforço.
Visando extingui-lo, B. tomou o partido de
se casar, e desposou, de fato, uma jovem possuidora de eminentes predicados,
fazendo o possível por amá-la.
Cedo, contudo, percebeu a impossibilidade
do expediente. Decorreram quatro anos sem que B. ou a Sra. D. faltassem aos
seus deveres.
O que padeceram só eles o sabem, pois D.,
que estimava deveras o seu amigo, atraía-o sempre ao seu lar, insistindo para
que nele ficasse quando tentava retirar-se.
Aproximados um dia por circunstâncias
fortuitas e independentes da própria vontade os dois amantes deram-se ciência
do mal que os torturava e acharam que a morte era, no caso, o único remédio que
se lhes antolhava. Assentaram que se suicidariam juntamente, no dia seguinte,
em que o Sr. D. estaria ausente de casa mais prolongadamente.
Feitos os últimos preparativos, escreveram
longa e tocante missiva, explicando a causa da sua resolução: para não
prevaricarem. Essa carta terminava pedindo que lhes perdoassem e, mais, que os
enterrassem na mesma sepultura.
De regresso a casa, o Sr. D. encontrou-os
asfixiados. Respeitou-lhes os últimos desejos, e, assim, não consentiu fossem
os corpos separados no cemitério.”
Sendo esta ocorrência submetida à Sociedade
de Paris, como assunto de estudo, um Espírito respondeu:
“Os dois amantes suicidas não
vos podem responder ainda. Vejo-os imersos na perturbação e aterrorizados pela
perspectiva da eternidade. As consequências morais da falta cometida lhes
pesarão por migrações sucessivas, durante as quais suas almas separadas se
buscarão incessantemente, sujeitas ao duplo suicídio de se pressentirem e
desejarem em vão.
Completa a expiação, ficarão
reunidos para sempre, no seio do amor eterno. Dentro de oito dias, na próxima
sessão, podereis evocá-los. Eles aqui virão sem, contudo, avistarem-se, porque
profundas trevas os separarão por muito tempo.”
1.
Evocação da suicida – Vedes o vosso amado, com o qual vos
suicidastes?
R. Nada vejo, nem mesmo os Espíritos que comigo erram neste mundo. Que
noite! Que noite! E que véu espesso me circunda a fronte!
2. Que
sensação experimentastes ao despertar no outro mundo?
R. Singular! Tinha frio e escaldava. Tinha gelo nas veias e fogo na
fronte! Coisa estranha, conjunto inaudito! Fogo e gelo pareciam consumir-me! E
eu julgava que ia sucumbir uma segunda vez!...
3. Experimentais
qualquer dor física?
R. Todo o meu sofrimento reside aqui, aqui...
- Que quereis dizer por aqui, aqui?
R. Aqui no meu cérebro, aqui no coração...
É provável que, visível, o Espírito levasse
a mão à cabeça e ao coração.
4. Acreditais
na perenidade dessa situação?
R. Oh! Sempre! Sempre! Ouço às vezes risos infernais, vozes horríficas que
bradam: sempre assim!
5. Pois
bem: podemos com segurança dizer-vos que nem sempre assim será. Pelo
arrependimento obtereis o perdão.
R. Que dizeis? Não ouço.
6.
Repetimos que os vossos sofrimentos terão um termo, que os podereis abreviar
pelo arrependimento, sendo-nos possível auxiliar-vos com a prece.
R. Não ouvi, além de sons confusos, mais que uma palavra. Essa palavra é:
graça! Seria efetivamente graça o que pronunciastes? Falastes em graça, mas sem
dúvida o fizestes à alma que por aqui passou junto de mim, pobre criança que
chora e espera.
Uma senhora, presente à reunião, declarou
que fizera fervorosa prece pela infeliz, o que sem dúvida a comoveu, e que de
fato, mentalmente, havia implorado em seu favor a graça de Deus.
7. Dissestes
estar em trevas e nada ouvir?
R. É-me permitido ouvir algumas das vossas palavras, mas o que vejo é
apenas um crepe negro, no qual de quando em quando se desenha um semblante que
chora.
8. Mas
uma vez que ele aqui está sem o avistardes, nem sequer vos apercebeis da
presença do vosso amado?
R. Ah! não me faleis dele. Devo esquecê-lo presentemente para que do crepe
se extinga a imagem retratada.
9. Que
imagem é essa?
R. A de um homem que sofre e cuja existência moral na Terra aniquilei por
muito tempo.
Observações
de A. Kardec: Da leitura dessa narrativa logo se
depreende haver neste suicídio circunstâncias atenuantes, encarando-o como ato
heroico provocado pelo cumprimento do dever. Mas reconhece-se, também, que,
contrariamente ao julgado, longa e terrível deve ser a pena dos culpados por se
terem voluntariamente refugiado na morte para evitar a luta. A intenção de não
faltar aos deveres era, efetivamente, honrosa, e lhes será levada em conta mais
tarde, mas o verdadeiro mérito consistiria na resistência, tendo ele procedido
como o desertor que se esquiva no momento do perigo.
A pena consistirá, como se vê, em se
procurarem debalde e por muito tempo, quer no mundo espiritual, quer noutras
encarnações terrestres; pena que ora é agravada pela perspectiva da sua eterna
duração. Essa perspectiva, aliada ao castigo, faz que lhes seja defeso ouvirem
palavras de esperança que porventura lhes dirijam. Aos que acharem esta pena
longa e terrível, tanto mais quanto não deverá cessar senão depois de várias
encarnações, diremos que essa duração não é absoluta, mas depende da maneira
por que suportarem as futuras provações, além do que podem eles ser auxiliados
pela prece. E serão assim, como todos, os árbitros do seu destino. Não será
isso, ainda assim, preferível à eterna condenação, sem esperança, a que ficam
irrevogavelmente submetidos segundo a doutrina da Igreja, que os considera
votados ao inferno e para sempre, a ponto de lhes recusar, com certeza por
inúteis, as últimas preces?
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