O texto a
seguir é extraído do Livro Missionários da Luz, autor espiritual André Luiz,
psicografia de Chico Xavier. Nesta obra André Luiz vivencia importantes
experiências no plano espiritual, na companhia orientador Alexandre, dentre as
quais está o drama do espírito Raul, suicida recente em processo de reencontro
com os ditames conscienciais.
Certa noite,
finda a dissertação que Alexandre consagrava aos companheiros terrenos, meu
orientador foi procurado por duas senhoras, que foram conduzidas, em condições
especialíssimas, àquele curso adiantado de esclarecimentos, porquanto eram
criaturas que ainda se encontravam presas aos veículos de carne e que
procuravam o instrutor, temporariamente desligadas do corpo, por influência do
sono.
A mais velha,
evidentemente Espírito mais elevado, pelas expressões de luz de que se via
rodeado, parecia muito conhecida e estimada de Alexandre, que a recebeu com
indisfarçáveis demonstrações de carinho. A outra, porém, envolvida num círculo
escuro, trazia o semblante lacrimoso e angustiado.
- Ó meu
amigo! – exclamou a entidade mais simpática, dirigindo-se ao benévolo
orientador, depois das primeiras saudações – trago-lhe minha prima Ester, que
perdeu o esposo em dolorosas circunstâncias.
E enquanto a
senhora indicada enxugava os olhos, em silêncio, acabrunhadíssima, a outra
continuava:
- Alexandre,
conheço a elevação e a urgência de seus serviços; entretanto, ouso pedir sua
ajuda para os nossos pesares terrestres! Se houver absurdo em nossa rogativa,
desculpe-nos com o seu coração clarividente e bondoso! Somos mulheres humanas!
Perdoe-nos, pois, se batemos à sua porta de benfeitor, para atender a problemas
tristes!...
- Etelvina,
minha amiga – falou o instrutor, com entonação de ternura –, em toda parte, a
dor sincera é digna de amparo. Se há sofrimentos na carne, existem eles também
aqui, onde nos encontramos sem os despojos grosseiros e, em todos os lugares,
devemos estar prontos à cooperação legítima. Diga, portanto, o que desejam e
ponham-se à vontade!
Ambas as
senhoras demonstraram-se aliviadas e passaram a conversar calmamente.
Etelvina,
satisfeita, apresentou então a companheira que começou a relatar seu doloroso
romance. Casara-se, fazia doze anos, com o segundo noivo que o destino lhe
reservara, esclarecendo que o primeiro, ao qual amara muito, suicidara-se em
circunstâncias misteriosas. A princípio, preocupara-se intensamente com a
atitude de Noé, o noivo primeiro, bem-amado de seu coração; todavia, o
devotamento de Raul, o esposo que o Céu lhe enviara, conseguira desfazer-lhe as
mágoas do passado, edificando-lhe a ventura conjugal, com amoroso entendimento.
Haviam recebido três filhinhos da Providência Divina e viviam em harmonia
completa. Raul, conquanto melancólico, era dedicado e fiel. Quantas vezes
desejara ela balsamizar-lhe, em vão, as chagas recônditas! O companheiro,
todavia, nunca se lhe revelara plenamente! Apesar disso, a existência
corria-lhe venturosa e calma, no santuário da mútua compreensão. Não obstante,
porém, viverem para o desempenho das sagradas obrigações domésticas, apareceram
inimigos ocultos que lhes haviam subtraído a felicidade. Raul fora assassinado
inexplicavelmente. Amigos anônimos recolheram-lhe o cadáver na via pública,
trazendo-lhe à casa a terrível surpresa. Tinha ele o coração varado por um tiro
de revólver, que, embora encontrado junto ao corpo exangue, não lhe pertencia.
Que mistério envolveria o hediondo crime? Diversos populares e policiais
acreditavam tratar-se de suicídio, tanto assim que todas as diligências da
justiça criminal se encontravam interrompidas; entretanto, em sua convicção de
mulher, admitia o assassínio. Que motivos conduziriam um homem probo e
trabalhador ao suicídio sem causa? Por que se mataria Raul, quando tudo lhes
era favorável, relativamente ao futuro? Inegavelmente, seus recursos
financeiros não eram extensos, mas sabiam equilibrar, com decência, a despesa
doméstica e a receita comum. Não, não. O companheiro, a seu parecer, teria
partido da Crosta por imposição de tenebroso crime. Mas em sua generosidade feminina,
Ester, em lágrimas, não desejava positivar a culpabilidade de ninguém, não
desejava vingar-se e, sim, acalmar o coração em desalento. Seria possível, por
intermédio de Alexandre, sonhar com o companheiro, no sentido de obter-lhe as
notícias diretas e fazer-lhe sentir o carinhoso interesse do lar? Em vista dos
filhos pequenos e de dois velhos tios que estavam dependentes de seus
préstimos, a angustiada viúva encontrava-se em péssimas condições financeiras,
na viuvez inesperada; todavia, acrescentava em pranto, estava disposta a
trabalhar e consagrar-se aos filhinhos, recomeçando a vida, mas antes disso,
desejava algum conforto para o coração, anelava inteirar-se do ocorrido e
conhecer a situação do esposo, para conformar-se.
E, no fim da
longa e sentida exposição, rematava, lacrimosa, dirigindo-se ao meu orientador:
- Por
piedade, generoso amigo! nada me podei dizer? que terá sido feito de Raul? quem
o teria assassinado? e por quê?
A viúva
sofredora parecia alucinada de dor e internava-se através das mais descabidas
indagações; Alexandre, porém, longe de se desgostar com as perguntas
intempestivas, assumira atitude paternal e, carinhosamente, tomou as mãos da
interlocutora, respondendo-lhe:
- Tenha calma
e coragem, minha amiga! Neste momento, não é fácil esclarecê-la. É imperioso
sindicar, com cuidado, a fim de solucionar o problema com critério devido.
Volte, pois, ao lar e descanse a mente oprimida... Ansiedades existem que não
se curam à força de raciocínios do mundo. É indispensável conhecer o refúgio da
oração, confiando-as ao Supremo Pai. Ampare-se à fé sincera, confie na
Providência e veremos o que é possível fazer no setor da informação e do
socorro fraterno. Examinemos o assunto com atenção!
Ambas as
senhoras teceram ainda alguns comentários dolorosos, em torno do acontecimento,
e despediram-se, mais tarde, com palavras de gratidão e conforto.
A sós comigo
e sentindo, talvez, a minha necessidade de preparação e conhecimento, o
orientador explicou:
- Nossos
amigos encarnados muitas vezes acreditam que somos meros adivinhos e, pelo
simples fato de nos conservarmos fora da carne, admitem que já somos senhores
de sublimes dons divinatórios, esquecidos de que o esforço próprio, com o
trabalho legítimo, é uma lei para todos os planos evolutivos.
[...]
Depois de
rápidos minutos, fomos defrontados por uma entidade de aspecto humilde, mas
muito digno, a quem Alexandre se dirigiu afavelmente:
- Meu amigo é
visitador em função ativa?
- Sim, para
servi-lo – respondeu, atencioso, o interpelado.
O orientador
expôs-lhe, com franqueza e em poucas palavras, o que desejávamos.
Então, o
irmão visitador explicou-se razoavelmente: conhecera Raul, de perto,
auxiliara-o muitas vezes, prestando-lhe continuada assistência espiritual;
todavia, não pudera, nem ele e nem outros amigos, evitar-lhe o suicídio
friamente deliberado.
- Suicídio? –
interrogou Alexandre, procurando informar-se de maneira completa. – A viúva
acredita em assassínio.
- Entretanto
– ponderou o novo amigo –, ele soubera dissimular com cuidado. Meditara por
muito tempo o ato infeliz e, no último dia, fizera a aquisição de um revólver
para o fim desejado. Alvejando a região do coração, atirou a arma a pequena
distância, depois de utilizá-la, cautelosamente, para evitar as impressões
digitais e, desse modo, conseguira burlar a confiança dos familiares,
fazendo-os supor tivesse havido doloroso crime.
- E chegou a
vê-lo nos derradeiros minutos da tragédia? – indagou Alexandre, paternal.
- Sim –
esclareceu o interlocutor –, alguns amigos e eu tentamos socorrê-lo, mas, em
vista das condições da morte voluntária, friamente deliberada, não nos foi
possível retirá-lo da poça de sangue em que se mergulhou, retido por vibrações
pesadíssimas e angustiosas. Permanecíamos em serviço com o fim de ampará-lo,
quando se aproximou um “bando” de algumas dezenas, que abusou do infeliz e
deslocou-o, facilmente, em virtude da harmonia de forças perversas. Como pode
compreender, não nos foi possível arrebatá-lo das mãos dos salteadores da
sombra, que o carregaram por aí...
O instrutor
parecia satisfeito com as elucidações, e, quando vi que se dispunha a terminar
a palestra, ousei perguntar:
- Mas... e a
causa do suicídio? Não será interessante ouvir o visitador?
- Não –
explicou Alexandre, tranquilamente –. Indagaremos do próprio interessado.
Despedimo-nos.
Determinada indagação, todavia, atormentava-me o cérebro. Não a contive por
muitos instantes, dirigindo-me ao generoso orientador:
- Um “bando”?
mas o que significa? – interroguei.
Alexandre,
que me parecia agora mais preocupado, esclareceu:
- O “bando” a
que se refere o informante é a multidão de entidades delinquentes, dedicadas à
prática do mal. Embora tenham influenciação limitada, em virtude das defesas
numerosas que rodeiam os núcleos de nossos irmãos encarnados e as nossas
próprias esferas de ação, levam, a efeito muitas perturbações, concentrando os
impulsos de suas forças coletivas.
Porque fosse
muito grande a minha estranheza, o instrutor aduziu:
- Não se
surpreenda, meu amigo. A morte física não é banho milagroso, que converta maus
em bons e ignorantes em sábios, de um instante para outro. Há desencarnados que
se apegam aos ambientes domésticos, à maneira de hera às paredes. Outros,
contudo, e em vultoso número, revoltam-se nos círculos da ignorância que lhes é
própria e constituem as chamadas legiões das trevas, que afrontaram o próprio
Jesus, por intermédio de obsidiados diversos. Organizam-se diabolicamente,
formam cooperativas criminosas e ai daqueles que se transformam em seus
companheiros! Os que caem na senda evolutiva, pelo descaso das oportunidades
divinas, são escravos sofredores desses transitórios, mas terríveis poderes das
sombras, em cativeiro que pode caracterizar-se por longa duração.
- Mas o
visitador regional, como guarda destes sítios – inquiri, espantado –, não
poderia defender o suicida infeliz?
- Se ele
fosse vítima de assassínio, sim – respondeu o instrutor –, porque, na condição
real de vítima, o homem segrega determinadas correntes de força magnética
suscetíveis de pô-lo em contato com os missionários do auxílio; mas no suicídio
previamente deliberado, sem a intromissão de inimigos ocultos, como este sob
nossa observação, o desequilíbrio da alma é inexprimível e acarreta absoluta
incapacidade de sintonia mental com os elementos superiores.
- Mas –
indaguei, assombrado – as sentinelas espirituais não poderiam socorrer
independentemente?
Esboçou
Alexandre um gesto de tolerância fraterna e acentuou:
- Sendo a
liberdade interior apanágio de todos os filhos da Criação, não seria possível
organizar precipitados serviços de socorro para todos os que caem nos
precipícios dos sofrimentos, por ação propositada, com plena consciência de
suas atitudes. Em tais casos, a dor funciona como medida de auxílio nas
corrigendas indispensáveis. Mas... e os maus que parecem felizes em própria
maldade? – perguntará você, naturalmente. Esses são aqueles sofredores
perversos e endurecidos de todos os tempos, que, apesar de reconhecerem a
decadência espiritual de si mesmos, criam perigosa crosta de insensibilidade em
torno do coração. Desesperados e desiludidos, abrigando venenosa revolta,
atiram-se à onda torva do crime, até que um novo raio de luz lhes desabroche no
céu da consciência.
O assunto
oferecia ensejo a valiosos esclarecimentos, mas Alexandre esboçou um gesto de
quem não podia gastar muito tempo com palavras e, depois de ligeiro intervalo,
acrescentou:
- André,
mantenha-se em oração, ajudando-me por alguns momentos. Agora, que tenho
informações positivas do visitador, preciso mobilizar minhas possibilidades de
visão, sindicando quanto ao paradeiro do irmão infeliz.
Não obstante
conservar-me em prece, observei que o orientador entrava em profundo silêncio.
Daí a alguns minutos, Alexandre tomou a palavra e exclamou com quem estivesse
voltando de surpreendente excursão:
- Podemos
seguir adiante. O pobre irmão, semi-inconsciente, permanece imantado a um grupo
perigoso de vampiros, em lugarejo próximo.
O instrutor
pôs-se a caminho; segui-o, passo a passo, em silêncio, apesar de minha intensa
curiosidade.
Em pouco
tempo, distanciando-se dos núcleos suburbanos, encontramo-nos nas vizinhanças
de grande matadouro.
[...]
Alexandre
mostrou-me uma entidade de aspecto lamentável, semelhante a um autômato, a
vaguear em torno dos demais. Depois de fixar-lhe os olhos quase sem expressão,
reparei que a sua vestimenta permanecia ensanguentada.
- É o suicida
que procuramos – exclamou o instrutor, claramente.
- Que? –
perguntei, espantado – por que precisariam dele os vampiros?
- Semelhantes
infelizes – elucidou Alexandre – abusam de recém-desencarnados sem qualquer
defesa, como este pobre Raul, nos primeiros dias que se sucedem à morte física,
subtraindo-lhes as forças vitais, depois de lhes explorarem o corpo
grosseiro...
Estava
atônito, lembrando as antigas informações religiosas sobre as tentações
diabólicas, mas o orientador, firme na missão sagrada de auxílio, obtemperou:
- André, não
se impressione em sentido negativo. Todo homem, encarnado ou desencarnado, que
se desvie da estrada reta do bem, pode vir a ser perigoso gênio do mal. Não
temos tempo a perder. Vamos agir, socorrendo o desventurado.
Seguindo o
prestimoso mentor, aproximei-me também do infeliz. Alexandre alçou a destra
sobre a fronte de Raul e envolveu-o em vigoroso influxo magnético. Dentro de poucos
instantes, Raul permanecia cercado de luz, que foi vista imediatamente pelos
seres da sombra, observando eu que a maioria se afastou, lançando gritos de
horror. Vendo a claridade que rodeara a vítima, estavam lívidos, espantados. Um
dos algozes mais corajosos replicou em voz alta:
- Deixemos
este homem entregue à sua sorte. Os “espíritos poderosos” estão interessados
nele. Larguemo-lo!
Enquanto se
retiravam os verdugos, apressadamente, como se temessem algo que eu não podia
compreender ainda, em face da aproximação bendita daquela luz que vinha de Mais
Alto, perdia-me em dolorosas interrogações íntimas. O quadro era típico das
velhas lendas de demônios abandonando as almas prisioneiras de seus propósitos
infernais. As palavras “espíritos poderosos” haviam sido pronunciadas com
indisfarçável ironia. Pela claridade que envolvera o suicida, sabiam eles que
estávamos presentes e, embora fugissem, medrosos, alvejavam-nos com zombarias.
Aos poucos, o
matadouro de grandes proporções estava deserto de vampiros vorazes. Alexandre,
dando por finda a operação magnética, tomou a mão do amigo sofredor, que
parecia imbecilizado pela influenciação maligna, e, conduzindo-o para fora, a
caminho do campo, falou-me, bondoso:
- Não guarde
no coração as palavras irônicas que ouvimos. Esses irmãos desventurados merecem
a nossa maior compaixão. Vamos ao que nos possa interessar.
Recomendou-me
amparar o novo amigo, que parecia inconsciente de nossa colaboração, e, depois
de alguns minutos de marcha, estacionávamos sob árvore frondosa, depondo o
irmão enfraquecido e cambaleante sobre a relva fresca.
Impressionado
com o seu olhar inexpressivo, solicitei os esclarecimentos do orientador, cuja
palavra amiga não se fez esperar:
- O
pobrezinho permanece temporariamente desmemoriado. O estado dele, depois de tão
prologada sucção de energias vitais, é de lamentável inconsciência.
Em face de
minha estranheza, Alexandre acrescentou:
- Que deseja
você? Esperaria por aqui o processo de menor esforço? O magnetismo do mal está
igualmente cheio de poder, mormente para aqueles que caem voluntariamente sob
os seus tentáculos.
Em seguida,
inclinou-se paternalmente sobre o desventurado suicida e indagou:
- Irmão Raul,
como passa?
- Eu... Eu...
– murmurou o infeliz, como se estivesse mergulhado em profundo sono – não
sei... nada sei...
- Lembra-se
da esposa?
- Não... –
respondeu o suicida de modo vago.
O instrutor
levantou-se e disse-me:
- A
inconsciência dele é total. Precisamos despertá-lo.
Em seguida,
determinou que eu permanecesse ali, em vigilância, enquanto buscaria recursos
necessários.
- Não
poderemos acordá-lo por nós mesmos? – interroguei, admirado.
O orientador
sorriu e considerou:
- Bem se
reconhece que você não é veterano em serviços “intercessórios”. Esquece-se de
que vamos despertá-lo não só para a consciência própria, senão também para a
dor? Romperemos a crosta de magnetismo inferior que o envolve e Raul regressará
ao conhecimento da situação que lhe é própria; entretanto, sentirá o martírio
do peito varado pele projetil, rugirá de angústia ao contato da sobrevivência
dolorosa, criada, aliás, por ele mesmo. Ora, em tais casos, as primeiras
impressões são francamente terríveis e escoam-se algumas horas antes de seguro
alívio. E como outras obrigações esperam por nós, será conveniente entrega-lo
aos cuidados de outros amigos.
As
observações calaram-me fundamente.
Decorridos
vinte minutos, aproximadamente, Alexandre voltou acompanhado de dois irmãos que
se prontificaram a conduzir o infeliz e, daí a algum tempo, encontrávamo-nos
numa casa espiritual de socorro urgente, localizada na própria esfera da
Crosta. Via-se que a organização atendia a trabalhos de emergência, porquanto o
material de assistência era francamente rudimentar.
Adivinhando-me
o pensamento, Alexandre explicou:
- No círculo
de vibrações antagônicas dos habitantes da Crosta, não se pode localizar uma
instituição completa de auxílio. O trabalho de socorro, desse modo, há de
sofrer incontestável deficiência. Esta casa, porém, é um hospital volante que
conta com a abnegação de muitos companheiros.
Deposto Raul
num leito alvo, o devotado instrutor começou a aplicar-lhe passes magnéticos
sobre a região cerebral. Não se passou muito tempo e o infeliz lançou um grito
estertoroso e vibrante, dilacerando-me o coração.
- Eu morro!
Eu morro!... – gritava Raul, em suprema aflição, tentando, agora, escalar as
paredes. – Acudam-me... Não quero morrer!...
Enfermeiros
solícitos amparam-no com atenção, mas o paciente parecia tomado de horror.
Olhos esgazeados em máscara de sofrimento indefinível, continuava gritando
estentoricamente, como se houvesse acordado de pesadelo angustioso.
- Ester!
Ester!... – chamou o infeliz, recordando a esposa devotada – venha em meu
auxílio pelo amor de Deus! socorra-me! Meus filhos!... meus filhos!...
Alexandre acercou-se
dele paternalmente e obtemperou:
- Raul, tenha
paciência e fé no Divino Poder! Procure enfrentar corajosamente a situação
difícil que você mesmo criou e não invoque o nome da companheira dedicada, nem
chame pelos filhos amados que deixou na sua antiga paisagem do mundo, porque a
porta material de sua casa se fechou com os seus olhos. Se você tivesse
cultivado o amor cristão, prezando as oportunidades que o Senhor lhe confiou,
fácil seria, num momento destes, regressar ao ninho afetuoso para rever os
entes amados, ainda que eles não conseguissem identificar a sua presença.
Mas... agora, meu amigo, é muito tarde... é necessário aguardar outro ensejo de
trabalho e purificação, porque a sua oportunidade, com o nome terrestre de
Raul, está finda...
Imenso pavor
a estampar-se-lhe no semblante, o interpelado revidou:
- Estarei
morto, porventura? não sinto o coração varado de dor? não tenho as vestes
ensanguentadas? Será isto morrer? Absurdo!...
Muito sereno,
o bondoso instrutor voltou a falar:
- Não empunhou
sua arma contra o próprio peito? não localizou o coração para exterminar a
própria vida? Ó meu amigo, podem os homens enganar uns aos outros, mas nenhum
de nós poderá iludir a Justiça Divina.
Revelando
extrema vergonha, ao sentir-se a descoberto, o suicida prorrompeu em soluços,
murmurando:
- Ah!
desventurado que sou! mil vezes infeliz!...
Alexandre,
contudo, não tornou a falar-lhe naquela circunstância. Depois de recomendá-lo
carinhosamente aos cuidados dos irmãos responsáveis pelos serviços de assistência,
dirigiu-se a mim, explicando:
- Vamos,
André! Nosso novo amigo está em crise cuja culminância não cederá antes de
setenta horas, aproximadamente. Voltaremos mais tarde a vê-lo.
De regresso
aos meus trabalhos, esperei, ansioso, o instante de reatar as observações
educativas. Impressionava-me a complexidade do serviço “intercessório”. As
simples orações de uma esposa saudosa e dedicada haviam provocado atividades
numerosas para o meu orientador e valiosos esclarecimentos para mim. Como
agiria Alexandre na fase final? que revelações teria Raul para os nossos
ouvidos de companheiros interessados no seu bem-estar? conseguiria a esposa
consolar-se nos círculos da viuvez?
Abrigando
interrogações numerosas, aguardei o momento azado. Decorridos quatro dias, o instrutor
convidou-me a tornar ao assunto, o que fez exultar de contentamento pela
possibilidade de prosseguir, aprendendo para a minha própria evolução.
Encontramos
Raul cheio de dores; todavia, mais calmo para sustentar a conversação
esclarecedora. Queixava-se da ferida aberta, do coração descontrolado, dos
sofrimentos agudos, do grande abatimento. Sabia, porém, que não se encontrava
mais no círculo da carne, embora semelhante verdade lhe custasse angustioso
pranto.
-
Tranquilize-se – disse-lhe o meu orientador, com inexprimível bondade –, sua situação
é difícil, mas poderia ser muito pior. Há suicidas que permanecem agarrados aos
despojos cadavéricos por tempo indeterminado, assistindo à decomposição
orgânica e sentindo o ataque dos vermes vorazes.
- Ai de mim!
– suspirou o mísero – porque, além de suicida, sou igualmente criminoso.
E
demonstrando infinita confiança em nós, Raul contou a sua história triste,
procurando justificar o ato extremo.
Na mocidade,
viera do interior para a cidade grande, atendendo ao convite de Noé, seu
camarada de infância. Companheiro devotado e sincero, esse amigo apresentara-o,
certa vez, à noiva querida, com quem esperava tecer, no futuro, o ninho de
ventura doméstica. Ai! desde o dia, porém, que vira Ester pela primeira vez, nunca
mais pôde esquecê-la. Personificava a jovem o que ele, Raul, reputava como seu
mais alto ideal para o matrimônio feliz. Em sua presença, sentia-se o mais
ditoso dos homens. Seu olhar alimentava-lhe o coração, suas ideias constituíam
a continuidade dos seus próprios pensamentos. Como, porém, fazer-lhe sentir o
afeto imenso? Noé, o bom companheiro do passado, tornara-se-lhe o empecilho que
precisava remover. Ester seria incapaz de traição ao compromisso assumido. Noé
mostrava-se infinitamente bondoso e estimável para provocar um rompimento. Foi
então que lhe nasceu no cérebro a tenebrosa ideia de um crime. Eliminaria o
rival. Não cederia sua felicidade a ninguém. O colega deveria morrer. Mas como
efetuar o plano sem complicações com a Justiça? Enceguecido pela paixão
violenta, passou a estudar minuciosamente a realização de seus criminosos
propósitos. E encontrou uma fórmula sutil para a eliminação do companheiro
dedicado e fiel. Ele, Raul, passou a usar conhecido e terrível veneno em
pequeninas doses, aumentando-as vagarosamente até habituar o organismo com
quantidades que para outrem seriam fulminantes. Atingido o padrão de
resistência, convidou o companheiro para um jantar e propinou-lhe o veneno
odioso em vinho agradável que ele próprio bebeu, sem perigo algum. Noé, porém,
desaparecera em poucas horas, passando por suicida, à apreciação geral. Guardou
ele, para sempre, o segredo terrível, e, depois de cortejar gentilmente a noiva
chorosa, conseguiu impor-lhe simpatia, que culminou em casamento. Atingira a
realização do que mais desejava: Ester pertencia-lhe na qualidade de mulher;
vieram os filhinhos enfeitar-lhe o viver, mas... a sua consciência fora ferida
sem remissão. Nas mais íntimas cenas do lar, via Noé, através da tela mental,
exprobando-lhe o procedimento. Os beijos da esposa e as carícias dos filhos não
conseguiam afastar a visão implacável. Ao invés de decrescerem, seus remorsos
aumentavam sempre. No trabalho, na leitura, na mesa de refeições, na alcova
conjugal, permanecia a vítima a contemplá-lo em silêncio. A certa altura do
destino, quis entregar-se à justiça do mundo, confessando o crime hediondo;
entretanto, não se sentia com o direito de perturbar o coração da companheira,
nem deveria encher de lodo o futuro dos filhinhos. A sociedade respeitava-o,
acatando-lhe o ambiente doméstico. Companheiros distintos de trabalho
prezavam-lhe a companhia. Como esclarecer a verdade em semelhantes
contingências? Não obstante amar ternamente a esposa e os filhos, achava-se
esgotado, ao fim de prolongada resistência espiritual. Receava a perturbação, o
hospício, o aniquilamento, fugindo à confissão do crime que, cada dia, se
tornava mais iminente. A essa altura, a ideia do suicídio tomou vulto em seu
cérebro atormentado. Não resistiu por mais tempo. Esconderia o último ato do
seu drama silencioso, como ocultara a tragédia primeira. Comprou um revólver e
esperou. Certo dia, após o trabalho diário, absteve-se do caminho de volta ao
lar e empunhou a arma contra o próprio coração, agindo cautelosamente para evitar
as marcas digitais. Atingido o alvo, num supremo esforço desfizera-se do
revólver homicida e não teve a atenção voltada senão para o intraduzível
padecimento do tórax estrangulado... Dificilmente, como se os seus olhos
permanecessem anuviados, sentiu que algumas pessoas tentavam socorrê-lo e, em
seguida, verdadeira multidão de criaturas, que ele não pôde ver, arrebatava-o
do local de dor... Desde então, um enfraquecimento geral tomara-o por completo.
Sentia-se presa de um sono pesado e angustioso, cheio de pesadelos cruéis. E,
por fim, somente recuperara a consciência de si mesmo, ali naquele quarto
modesto, depois de Alexandre restaurar-lhe as energias em prostração.
Terminando a
confissão longa e amargurosa, Raul tinha o peito opresso e lágrimas pesadas a
lhe lavarem o rosto.
Comovidíssimo,
não sabia, por minha vez, o que externar. Aquele drama oculto daria para
impressionar corações de pedra. Alexandre, contudo, demonstrando a grandeza de
suas elevadas experiências, mantinha respeitável serenidade, e falou:
- Nos maiores
abismos, Raul, há sempre lugar para a esperança. Não se deixe dominar pela
ideia de impossibilidade. Pense na renovação de sua oportunidade, medite na
grandeza de Deus. Transforme o remorso em propósito de regeneração.
E após
ligeira pausa, enquanto o infeliz se debulhava em pranto, o mentor prosseguiu:
- Em verdade,
seus males e agora não podem desaparecer milagrosamente. Todos faremos a
colheita compatível com a semeadura, mas também nós, que hoje aprendemos alguma
coisa, já passamos, vezes inúmeras, pela lição de recomeçar. Tenha calma e
coragem.
[...]
Alexandre
percebeu-me o estado d’alma e falou comovidamente:
- Segundo
observa, o trabalho de socorro pede muito esforço e devotamento fraterno. Não
podemos esquecer que Raul e Ester são dois enfermos espirituais e, nessa
condição, requerem muita compreensão de nossa parte. Felizmente, a viúva regressa
cheia de novo ânimo e o nosso amigo, sentindo a extensão dos cuidados de que
está sendo objeto, e notando por si mesmo quanto pode auxiliar a companheira
encarnada, dar-se-á pressa em criar novas expressões de estímulo e energia no
próprio coração.
Impressionado,
contudo, em vista do dilaceramento havido em seu organismo espiritual,
indaguei:
- E a região
ferida? Raul experimentará semelhantes padecimentos até quando?
- Talvez por
muitos anos – respondeu o instrutor, em tom grave. – Isso, porém, não o
impedirá de trabalhar intensamente no campo da consciência, esforçando-se pela
reaproximação da bendita oportunidade regeneradora.
Outros
problemas afloravam-me à ideia. No entanto, o instrutor precisava ausentar-se,
em demanda de incumbências difíceis, nas quais não poderia eu acompanhá-lo.
(MISSIONÁRIOS
DA LUZ, cap. 11, edição da Federação Espírita Brasileira)
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