Clarêncio
Imagem do filme "Nosso Lar" - ano 2010 |
“Suicida! Suicida! Criminoso!
Infame!” – gritos assim cercavam-me de todos os lados. Onde os sicários de
coração empedernido? Por vezes, enxergava-os de relance, escorregadios na treva
espessa e, quando meu desespero atingia o auge, atacava-os, mobilizando
extremas energias. Em vão, porém, esmurrava o ar nos paroxismos da cólera.
Gargalhadas sarcásticas feriam-me os ouvidos, enquanto os vultos negros
desapareciam na sombra.
Para quem apelar? Torturava-me a
fome, a sede me escaldava. Comezinhos fenômenos de experiência material
patenteavam-se-me aos olhos. Crescera-me a barba, a roupa começava a romper-se
com os esforços da resistência, na região desconhecida. A circunstância mais
dolorosa, no entanto, não é o terrível abandono a que me sentia votado, mas o
assédio incessante de forças perversas que me assomavam nos caminhos ermos e
obscuros. Irritavam-me, aniquilavam-me a possibilidade de concatenar ideias.
Desejava ponderar maduramente a situação, esquadrinhar razões e estabelecer
novas diretrizes ao pensamento, mas aquelas vozes, aqueles lamentos misturados
de acusações nominais, desnorteavam-me irremediavelmente.
- Que buscas, infeliz! Aonde
vais, suicida?
Tais objurgatórias,
incessantemente repetidas, perturbavam-me o coração. Infeliz, sim; mas,
suicida? – nunca! Essas increpações, a meu ver, não eram procedentes. Eu havia
deixado o corpo físico a contragosto. Recordava meu porfiado duelo com a morte.
Ainda julgava ouvir os últimos pareceres médicos, enunciados na Casa de Saúde;
lembrava a assistência desvelada que tivera, os curativos dolorosos que
experimentara nos dias longos que se seguiram à delicada operação dos
intestinos. Sentia, no curso dessas reminiscências, o contato do termômetro, o
pique desagradável da agulha de injeções e, por fim, a última cena que
precedera o grande sono: minha esposa ainda jovem e os três filhos
contemplando-me, no terror da eterna separação. Depois... o despertar na
paisagem úmida e escura e a grande caminhada que parecia sem fim.
Porque a pecha de suicídio,
quando fora compelido a abandonar a casa, a família e o doce convívio dos meus?
O homem mais forte conhecerá limites à resistência emocional. Firme e resoluto
a princípio, comecei por entregar-me a longos períodos de desânimo, e, longe de
prosseguir na fortaleza moral, por ignorar o próprio fim, senti que as lágrimas
longamente represadas visitam-me com mais frequência, extravasando do coração.
A quem recorrer? Por maior que
fosse a cultura intelectual trazida do mundo, não poderia alterar, agora, a
realidade da vida. Meus conhecimentos, ante o infinito, semelhavam-se a
pequenas bolhas de sabão levadas ao vento impetuoso que transforma as
paisagens. Eu era alguma coisa que o tufão da verdade carreava para muito
longe. Entretanto, a situação não modificava a outra realidade do meu ser
essencial. Perguntando a mim mesmo se não enlouquecera, encontrava a
consciência vigilante, esclarecendo-me que continuava a ser eu mesmo, com o
sentimento e a cultura colhidos na experiência material. Persistiam as
necessidades fisiológicas, sem modificação. Castigava-me a fome todas as
fibras, e, nada obstante, o abatimento progressivo não chegava a cair
definitivamente em absoluta exaustão. De quando em quando, deparavam-se-me
verduras que me pareciam agrestes, em torno de humildes filetes d’água a que me
atirava sequioso. Devorava as folhas desconhecidas, colava os lábios à nascente
turva, enquanto mo permitam as forças irresistíveis, a impelirem-me para a
frente.
Muita vez suguei a lama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia,
vertendo copioso pranto. Não raro, era imprescindível ocultar-me das enormes
manadas de seres animalescos, que passavam em bando, quais feras insaciáveis.
Eram quadros de estarrecer! Acentuava-se o desalento. Foi quando comecei a
recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde fosse. Essa ideia
confortou-me. Eu, que detestara as religiões do mundo, experimentava agora a
necessidade de conforto místico. Médico extremamente arraigado ao negativismo
da minha geração, impunha-se-me atitude renovadora. Tornava-se imprescindível
confessar a falência do amor-próprio, a que me consagrara orgulhoso.
Imagem do filme "Nosso Lar" - ano 2010 |
E, quando as energias me faltaram de todo, quando me senti absolutamente colado ao lodo da Terra, sem forças para reerguer-me, pedi ao Supremo Autor da Natureza me estendesse mãos paternais, em tão amargurosa emergência.
Quanto tempo durou a rogativa?
Quantas horas consagrei à súplica, de mãos postas, imitando a criança aflita?
Apenas sei que a chuva das lágrimas me lavou o rosto; que todos os meus
sentimentos se concentraram na prece dolorosa. Estaria, então, completamente
esquecido? Não era, igualmente, filho de Deus, embora não cogitasse de
conhecer-lhe a atividade sublime quando engolfado nas vaidades da experiência
humana? Porque não me perdoaria o Eterno
Pai, quando providenciava ninho às aves inconscientes e protegia, bondoso, a
flor tenra dos campos agrestes?
Ah! é preciso haver sofrido
muito, para entender todas as misteriosas belezas da oração; é necessário haver
conhecido o remorso, a humilhação, a extrema desventura, para tomar com
eficácia o sublime elixir da esperança. Foi nesse instante que as neblinas
espessas se dissiparam e alguém surgiu, emissário dos Céus. Um velhinho
simpático me sorriu paternalmente. Inclinou-se, fixou nos meus os grandes olhos
lúcidos, e falou:
- Coragem, meu filho! O Senhor
não te desampara.
Amargurado pranto banhava-me a
alma toda. Emocionado, quis traduzir meu júbilo, comentar a consolação que me
chegava, mas, reunindo todas as forças que me restavam, pude apenas inquirir:
- Quem sois, generoso emissário
de Deus?
O inesperado benfeitor sorriu bondoso
e respondeu:
- Chama-me Clarêncio, sou apenas
teu irmão.
Imagem do filme "Nosso Lar" - ano 2010 |
E, percebendo o meu esgotamento,
acrescentou:
- Agora, permanece calmo e
silencioso. É preciso descansar para reaver energias.
Em seguida, chamou dois
companheiros que guardavam atitude de servos desvelados e ordenou:
- Prestemos ao nosso amigo os
socorros de emergência.
Alvo lençol foi estendido ali
mesmo, à guisa de maca improvisada, aprestando-se ambos os cooperadores a
transportarem-me, generosamente.
Quando me alçavam, cuidadosos,
Clarêncio meditou um instante e esclareceu, como quem recorda inadiável
obrigação:
- Vamos sem demora. Preciso atingir “Nosso Lar” com a presteza possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário